quarta-feira, 10 de outubro de 2007

neo-genealogia( herança do barão de cocais)

BRASIL, TERÇA-FEIRA, 2 DE OUTUBRO DE 2007
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Por que tanta gente hoje em dia pesquisa as próprias raízes?

Armando Alexandre dos Santos

Armando Alexandre dos Santos é historiador, escritor e jornalista profissional, autor de A Legitimidade Monárquica no Brasil, Parlamentarismo sim, mas à brasileira, Apontamentos para a História do Instituto Genealógico Brasileiro, etc. É Diretor de Publicações do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

“Sem temor, erguido sobre o travesseiro, Gonçalo não duvidava da realidade maravilhosa! Sim! Eram os seus avós Ramires, os seus formidáveis avós históricos, que, das suas tumbas dispersas corriam, se juntavam na velha casa de Santa Irinéia nove vezes secular – e formavam em torno do seu leito, do leito em que ele nascera, como a assembléia majestosa da sua raça ressurgida... Gonçalo sentiu que a sua ascendência toda o amava, e da escuridão das tumbas dispersas
acudira para o velar e socorrer na sua fraqueza.” Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires.


O tema do presente artigo é um curioso fenômeno que nas últimas décadas se vem manifestando, com crescente intensidade e cada vez mais generalizado, no Brasil, como também na Europa, nos Estados Unidos, em toda a América: o fenômeno da “Neo-Genealogia”.

Procuraremos inicialmente delimitar esse fenômeno, e para delimitá-lo tentaremos descrever suas numerosas manifestações. Na segunda parte, tentaremos explicá-lo: quais as razões psicológicas, sociológicas, psico-sociológicas, culturais, filosóficas, até mesmo de cunho religioso, que o otivam e produzem.

Cabe esclarecer, desde já, que procuramos redigir este trabalho evitando propositadamente dar a ele a amplitude, a extensão e o estilo de um tratado ou de uma tese acadêmica. Não visamos produzir uma exposição exaustiva, completa e acabada dos temas tratados, e menos ainda procuramos impingir à mente do leitor nossas próprias convicções pessoais; simplesmente quisemos sugerir ao seu espírito problemas e indagações que ele saberá, melhor do que ninguém, conferir com a realidade que tem diante de seus olhos e elaborar pouco a pouco, de acordo com suas próprias idéias, impressões e feitio psicológico. Os temas são, aqui, expostos e abordados de modo tanto quanto possível informal, em estilo vivo e corrente.

Antes de entrarmos na primeira parte da exposição, convém falar de um livro que, de certa forma, está na raiz desse curioso e intrigante fenômeno. O livro de Alex Haley Em 1976, o escritor norte-americano Alex Haley, de raça negra, publicou uma obra que se tornou rapidamente best-seller: Roots – Raízes.

Alex Haley foi militar, serviu na Marinha Norte-Americana, e quando passou para a reserva, aos 37 anos de idade, estabeleceu-se como jornalista e como escritor razoavelmente bem-sucedido.

A história de Raízes é interessante. Haley recordava-se de toda uma tradição oral existente na sua família materna, a ele transmitida por algumas tias velhas, que se lembravam de terem ouvido contar que um ancestral da família fora capturado na África, quando se afastara da sua aldeia para cortar um tronco de árvore e fabricar um tambor. A tradição oral da família conservava o nome africano desse ancestral – Kunta Kinte –, o seu nome adotado nos Estados Unidos – Toby –, os nomes dos primeiros senhores que o escravo Kunta Kinte-Toby teve na América, algumas palavras e expressões do idioma africano, passados de geração em geração, e uma série de episódios da
vida desse escravo.

A partir desses dados fragmentários e incompletos, Haley, graças a uma bolsa que recebeu da ditora das Seleções do Reader’s Digest, pôde se dedicar à busca de suas raízes. Fez viagens à África, à Inglaterra, a diversos pontos dos Estados Unidos, consultou especialistas, arquivos, jornais da época em que os vários fatos se passaram. No total, pesquisou em 57 arquivos ou bibliotecas de três continentes, e levou, na pesquisa e na redação do livro, nada menos que 12 anos.

Inicialmente, graças a especialistas em idiomas africanos, ele conseguiu localizar o grupo ingüístico a que correspondiam as palavras e expressões africanas de que se lembrava; conseguiu depois situar aproximativamente a região de onde deveria provir seu ancestral – as margens do rio Gâmbia – e, viajando para a Gâmbia, soube que Kinte era um nome muito freqüente em duas aldeias do interior do país, as quais, segundo a tradição oral, haviam sido fundadas séculos atrás por dois irmãos, membros de um mesmo clã.

Haley procurou essas aldeias, e numa delas teve uma longa conversação – naturalmente por meio de um intérprete – com um griot.Os griots são cantadores que, de memória e por tradição oral, cantam a história das aldeias, dos clãs negros, das sucessivas gerações de seus moradores. Cada griot tem discípulos que ouvem a cantoria do mestre, aprendem-na de cor, e passam para a frente
aquele precioso repositório de tradição não escrita.

O griot consultado por Haley, após duas horas rememorando toda a história dos Kintes de passadas eras, chegou a um ponto em que, “quando os soldados do rei branco chegaram”, um jovem, chamado Kunta, tendo saído para derrubar uma árvore a fim de fazer um tambor, desaparecera. Haley, emocionado–éassim que ele conta no livro – somente então abriu seu caderninho de notas cuida dosamente catalogadas, e mostrou que aquilo coincidia exatamente com o ponto inicial de sua pesquisa, ou seja o que ouvira das velhas tias. Quando traduziram para o griot o que dizia o norte-americano, o bardo sorriu, houve uma espécie de cerimônia, com danças tradicionais, batuques e atabaques, e o distante membro do clã Kinte foi solenemente reintroduzido naquela sociedade tribal.

Posteriormente, com base em registros da marinha inglesa e dos censos norte-americanos, Haley conseguiu documentar de modo bastante completo – a julgar pelo seu livro, repita-se – o histórico de sete gerações de sua família, desde Kunta Kinte até ele próprio, e escreveu um livro um tanto romanceado sobre as aventuras de seu pentavô.

Esse livro fez um sucesso extraordinário dos Estados Unidos, e a partir dali no mundo todo. Teve inúmeras edições. No Brasil, foi publicado pela Editora Record com o título de Negras Raízes. Já em 1977 foi transformado em filme e depois em seriado de televisão. Na TV norte-americana, imediatamente se tornou recordista absoluto de audiência, conseguindo 130 milhões de elespectadores. Tanto o livro quanto o filme receberam diversos prêmios.

Embora haja quem pense que em Raízes o elemento ficção prepondere bastante sobre o elemento esquisa genealógica, o fato é que foi sobretudo a partir da publicação desse livro que tomou corpo e se fez notar mais sensivelmente, o fenômeno que, neste estudo, chamamos de “Neo-Genealogia”.

Três modalidades de genealogia, no passado Antes de mais nada, distingamos a “Neo-Genealogia” da Genealogia que se estudava outrora. Os estudos genealógicos, no passado, eram basicamente:
1) ou de cunho religioso;
2) ou de cunho nobiliárquico;
3) ou se destinavam a assegurar a transmissão da propriedade.


1) De cunho religioso

Basta lembrar as genealogias bíblicas: Moisés, que sob inspiração divina redigiu o Pentateuco, os primeiros cinco livros das Sagradas Escrituras, talvez possa ser considerado o primeiro Genealogista da História da Humanidade.

Não só entre os hebreus, mas entre os povos antigos em geral (pelo menos entre os que possuíam certo grau de cultura), eram muito freqüentes os registros genealógicos. Egípcios, Romanos, Assírios, Caldeus, Gregos, Persas, sempre deram grande valor às estirpes, e na valorização dessas estirpes estava presente um elemento religioso mais preponderante ou menos, mas sempre
constante e claro. O culto pela memória dos antepassados, reverenciados pelo que tinham sido e pelo que significavam para os seus descendentes, adquiria, o mais das vezes mesclado com um caráter um tanto supersticioso, um cunho de culto religioso. Isso era constante na Antiguidade.

A esse respeito, cabe lembrar aqui uma obra excelente, que em nossos dias vem sendo reapreciada devidamente: o clássico livro de Fustel de Coulanges La Cité Antique,2 que recentemente foi traduzido e editado pela Editora da Universidade de Brasília. Fustel de Coulanges mostra que tal era o respeito que entre os antigos se tributava aos antepassados, que quando alguém se afastava do
torrão natal em demanda de novas terras, para fundar novas cidades, para constituir novas sociedades, novas comunidades políticas, era costume levar, num vasinho, um pouco de terra do local em que nascera e onde estavam sepultados os antepassados. Essa porção de terra, levada com respeito, era também com respeito depositada no local em que se erigiria a nova fundação, para
que, de certa forma, pelo menos simbolicamente, fosse algo das cinzas dos antepassados que se transferisse para o novo local, e a continuidade daquela estirpe, na interpenetração profunda entre esses dois valores, a família e o torrão natal, fosse mantida.

As catacumbas romanas também têm origem, segundo teorias das mais categorizadas, nesse culto respeitoso dos antepassados – os Manes – (ao lado dos Lares e dos Penates).

Como fizesse parte dos costumes que os membros de uma família – da gens romana – fossem sepultados dentro dos limites do próprio lar, costumava-se escavar, dentro da urbe romana, por baixo das casas ou dos palácios, túneis em níveis diversos de profundidade, para, dentro dos limites da propriedade, sepultar os membros daquela gens. Cada família vivia, assim, no sentido mais estrito do termo, sobre um cemitério em que jaziam seus antepassados, sem sair dos limites territoriais do lar. Ao cabo de algumas gerações, inevitavelmente esses condutos subterrâneos se comunicavam uns com os outros, constituindo uma vastíssima rede de galerias que com o passar dos tempos perdeu a primitiva significação, mas na qual a Igreja perseguida, nos três primeiros séculos da Era Cristã, encontrou abrigo seguro (pois os pagãos conservavam um temor supersticioso de penetrar naquelas galerias escuras, e mesmo quando eles penetravam, os cristãos, que conheciam o mapeamento daquela cidade subterrânea, com relativa facilidade conseguiam ocultar-se), na qual sepultou seus mártires 2 COULANGES, Fustel de. La Cité Antique. 19.ª ed., Paris: Hachette, 1905. e que até hoje é visitada com comovida veneração por incontáveis peregrinos
que acorrem à Cidade Eterna.

2) De cunho nobiliárquico
Além dos registros genealógicos de cunho religioso, havia os de cunho nobiliárquico. Certas estirpes se destacavam por sua liderança, por sua maior capacidade de ação, por sua dedicação ao bem comum das sociedades grandes ou pequenas, não apenas se preocupando com o seu interesse individual ou familiar, mas também gerindo a sociedade e cuidando de prover às necessidades coletivas. Os membros dessas estirpes tendiam, muito explicável e naturalmente, a ser vistos com especial respeito pelos demais.

Já na Antiguidade, um tanto mesclado com o preponderante elemento religioso, constituíram-se aristocracias no verdadeiro sentido etimológico do termo (ou seja, os melhores ou os mais fortes exercendo o governo), as quais possuíam senso nobiliárquico, tendo noção clara de que constituíam uma elite, tinham conhecimento de seu passado e tinham esperança e disposição para um futuro na mesma orientação. Na Antiguidade, manda a verdade que se diga, essas aristocracias muito freqüentemente degeneravam naquilo que é, segundo Aristóteles e São Tomás de Aquino, a corrupção da aristocracia, ou seja, a oligarquia.

Passando agora da Antiguidade para as origens da Idade Média, ou seja, após a verdadeira derrocada que representou, para o Império Romano do Ocidente, a avalanche das invasões bárbaras, à medida que os povos bárbaros se foram civilizando, que foram sendo expulsos os restos de paganismo, a tendência natural era para se constituírem e se consolidarem estirpes aristocráticas. É muito explicável que se procurasse registrar e conservar os feitos e os fastos dessas estirpes, de onde os linhagistas medievais que existiram em todos os países da Europa. Para falar em termos portugueses, recorde-se o famoso Livro Velho das Linhagens, também conhecido como Nobiliário do Conde D. Pedro.

3) A genealogia que se destinava a garantir as heranças

Por fim, outra modalidade que tinham os estudos genealógicos até 20 ou 30 anos atrás, era quando se destinavam a assegurar a transmissão de patrimônios pela via da sucessão hereditária. Em Portugal, por exemplo, nos séculos XVI, XVII e XVIII eram clássicas as querelas judiciárias prolongadíssimas (algumas se arrastando por diversas gerações) pela disputa de um vínculo, de um
morgadio, de um senhorio qualquer que, por vontade do primitivo proprietário, se transmitia indivisível de geração em geração, pela linha da primogenitura, segundo certas regras gerais fixadas nas Ordenações do Reino, e segundo certas normas específicas estabelecidas pelo instituidor. Ao cabo de 100, 200 ou 300 anos, muitas vezes extinguia-se o ramo primogênito, e acontecia que se apresentavam vários pretendentes. Entravam então em cena genealogistas que,
com ou sem razão, procuravam sustentar a precedência de umas linhas sobre outras, ou contestar a legitimidade de certas sucessões.

Aqui no Brasil de nossos dias, há pelo menos dois casos judiciais abertos em que a ciência da Genealogia tem importante palavra a dizer. São os bem conhecidos casos das sucessões do Comendador Domingos Corrêa (cuja imensa fortuna, constante de larguíssimas extensões de terra no Rio Grande do Sul e no Uruguai, até hoje é disputada, decorridos mais de 100 anos de sua morte, por muitos milhares de pessoas que são ou se pretendem seus herdeiros) e do Barão de Cocais, que deixou uma fortuna muito grande aplicada num banco inglês e até hoje essa fortuna não foi retirada, embora esteja, teoricamente, à disposição das muitas centenas de seus herdeiros.

Ainda em nossos dias na França – pouca gente sabe disso no Brasil – há escritórios especializados, doublés de advocatícios e genealógicos. O mais antigo desses escritórios, o Étude Andriveau, está em funcionamento desde 1830. A especialidade de tais profissionais consiste em caçar herdeiros para fortunas jacentes.3 3 UTZERI, Fritz. “Franceses vivem de caçar herdeiros”, Jornal do Brasil, 2-11-1986.

Pela lei francesa, quando morre alguém sem herdeiros próximos, o direito de herdar se estende a parentes de graus muito afastados, às vezes remotos parentes inteiramente desconhecidos dos falecidos. A lei brasileira parece bem menos benigna, nesse ponto. Ainda pela legislação francesa, as heranças jacentes devem ser administradas (como, aliás, também no Brasil) por um curador,
durante um período razoavelmente prolongado, até que apareçam os herdeiros ou que, não aparecendo eles, a herança seja declarada vacante e passe para o domínio do Estado.

Então acontece que, quando morre alguém rico e não deixa testamento nem herdeiros conhecidos, esses escritórios se põem na caça dos herdeiros, levantando a árvore genealógica do defunto, e procurando ramos colaterais de sua família. Quando, afinal, localizam os herdeiros, evidentemente cobram caro seus serviços...

Cada interessado recebe, em sua casa, uma carta do escritório, dizendo que a equipe especializada daquele estabelecimento procedeu, por sua conta e risco, a laboriosíssimas investigações genealógicas que habilitam o destinatário a receber uma herança de um parente desconhecido. Caso o destinatário tenha interesse, basta assinar um documento que vai anexo, constituindo os advogados daquele escritório seus procuradores para o processo de inventário, e desde logo renunciando em favor do escritório a uma porcentagem sobre o total do valor dos bens herdados, à guisa de pagamento de honorários sobre a pesquisa genealógica (não sobre os trabalhos advocatícios, note-se). Somente depois de bem assinado e bem autenticado esse documento é que o escritório revela a identidade do “tio rico” desconhecido...

Para velar melhor o caso, alguns escritórios fazem o documento em termos que deixam o feliz recebedor de uma carta dessas ainda mais completamente no escuro... O texto a ser assinado pelo herdeiro prevê várias hipóteses: se o montante da herança for, por exemplo, de dez mil francos, o herdeiro se compromete a ceder ao escritório uma porcentagem bastante alta, de 50 % da herança; se o montante for maior, a porcentagem vai baixando gradativamente até 15 %.

Assim sendo, o felizardo nem tem condições de avaliar o montante da riqueza deixada pelo falecido, nem a quota que lhe cabe a ele (pois podem ser muitos os herdeiros, e só o escritório tem o mapeamento completo deles): só lhe resta aceitar as condições propostas ou desistir da herança. A menos que queira ele mesmo se entregar a pesquisas genealógicas de incerto resultado... Mas como ele também não é informado de quanto tempo faz que morreu o suposto ricaço, ele não sabe se o prazo legal para a habilitação já está se esgotando, e não sabe se serão muitos os co-herdeiros... É aceitar as condições ou desistir!

. Caricaturas ou contrafações do genealogista

A essas três modalidades clássicas de Genealogia, poderíamos acrescentar a do falso nobre. Ou seja, a da pessoa que se pretende nobre, se imagina nobre, e procura doidamente, numa ascendência irremediavelmente plebéia, algum antepassado nobre. E, como reza o velho ditado, “não há geração sem conde e ladrão”, pode acabar encontrando algum nobre. Então começa o delírio: supervaloriza-o, põe-se a falar dele para toda a gente, começa a usar anel de nobreza sem ter a isso direito, e comete toda espécie de desatinos que a convertem verdadeiramente numa caricatura de nobre... e numa caricatura de verdadeiro genealogista.

Essa ridícula posição, naturalmente, sempre foi alvo fácil de sátiras de todo tipo... Seria um não mais acabar se fôssemos aqui transcrever algumas dessas sátiras, verdadeiramente espirituosas. Apenas à guisa de exemplo, lembrem-se a de Alexandre de Gusmão4; a do Abade de Jazente, com seu famoso soneto satirizando os que supervalorizam linhagens fabulosas5; a de Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, que no final do seu Catálogo Genealógico das Principais Famílias da Bahia e Pernambuco, escreve em duas páginas a genealogia fabulosa da família Fialho.6

4 Genealogia Geral para Desvanecer a Errada Opinião dos Senhores Puritanos. Lisboa: Biblioteca Nacional, Códice 7663, págs. 48; in Brasil Genealógico, tomo 1, n.° 1, 1960.

5 Apud SILVA, Armando Barreiros Malheiro da. A Genealogia em Portugal e o Desafio do Presente, em Armas e Troféus. Lisboa, 1984, V série, tomo V, n.os 1-3.

6 Apud POLIANO, Luiz Marques. Heráldica. São Paulo: Edições GRD em convênio com o Instituto Municipal de Arte e Cultura-Rioarte, 1986, pp. 330-333.


E, the last but not the least, recorde-se o que escreveu o Apóstolo São Paulo em sua primeira Epístola a Timóteo, I, 4: “não se ocupassem (os fiéis) em fábulas e genealogias intermináveis, as quais servem mais para questões do que para aquela edificação de Deus, que se funda na fé.”

Outra caricatura do genealogista é a do profissional ou amador inescrupuloso, de encomenda, que é pago para elaborar uma prestigiosa árvore genealógica, e, sem seriedade científica, sem senso crítico, às vezes até dolosamente, forja origens falsas. Isso existia no passado, quando muitas vezes se recorria a processos desse gênero para provar a chamada “limpeza de sangue” em processos de habilitação de genere, para capacitar alguém para o sacerdócio, ou para o recebimento de uma comenda, ou algo do gênero.

. A Neo-Genealogia

Falemos agora não mais da velha e tradicional Genealogia, nem das caricaturas e contrafações dela, mas do fenômeno novo que se pode chamar Neo-Genealogia.

Já não mais é uma genealogia sacra, por motivos religiosos, que se estuda hoje em dia – exceção feita da seita Mormon, cujos membros investigam as próprias raízes porque crêem que a revelação que teria sido feita ao seu fundador, John Smith, no século passado, pode beneficiar as pessoas que viveram antes dele, se os descendentes delas se converterem ao mormonismo e cumprirem, em relação aos respectivos antepassados, determinados ritos póstumos.

Também não se trata de uma genealogia de cunho nobiliárquico. Não é para encontrar antepassados nobres que se pesquisa afanosamente, nem para disputar heranças e legados. Mas – e nisto está o essencial do fenômeno da “Neo-Genealogia” – é única e exclusivamente para encontrar as próprias raízes, provenham elas de onde provierem.

Sim, é com essa finalidade de encontrar as próprias raízes sejam elas quais forem que, nestes tempos em que vivemos, assistimos ao renascimento – melhor seria dizer à revivescência – dos estudos genealógicos.

Vejamos alguns fatos a esse respeito:

. Aumento do número de pesquisadores

São sempre mais numerosos os pesquisadores. E não são necessariamente velhos saudosistas e afeitos à poeira dos arquivos, por esquisitice ou mania. Mas são pessoas de todas as idades – muitas delas jovens–ede todas as classes sociais, inclusive das mais modestas. E isso em muitos países.

Há tempos visitou o Brasil um professor universitário norte-americano que, em conversa com genealogistas brasileiros, relatou um fato muito engraçado que mostra como também nos Estados Unidos de uns tempos para cá tem aumentado enormemente o número de pesquisadores de Genealogia.

Esse professor estava no interior do Estado de Kentucky, numa cidadezinha, e precisou entrar numa igreja, para pedir uma informação qualquer ao padre; era alguma coisa puramente religiosa o que ele desejava. O professor foi à igreja, procurou a sacristia, e percebeu que o padre, tão logo o viu, literalmente se escondeu. Pôs-se detrás de um móvel, afastou-se sorrateiramente, entrou
por um corredor e sumiu. Ele achou aquilo muito estranho, bateu palmas, tocou uma campainha que havia lá, chamou em voz alta pelo padre... e nada de o padre aparecer! Afinal, após muito barulho apareceu o padre de cara contrafeita, perguntando: – Afinal, o que o Sr. quer? É fazer pesquisa nos livros paroquiais, não é?

– Não, respondeu ele, eu estou apenas passando por aqui, e queria saber se o Sr. podia me informar o horário das Missas. Na mesma hora o padre se distendeu e abriu um largo sorriso:

– Claro que posso! Com muito gosto! O que não posso mais é suportar esses genealogistas insuportáveis que me vêm atormentar com suas intermináveis pesquisas! Quase todo dia aparece aqui um deles, e pensei que o Sr. fosse mais um...

A grande medievalista Régine Pernoud, na introdução do livro Le Tour de la France médiéval, que publicou em colaboração com Georges Pernoud,7 fala da enorme atualidade que tem, na França de nossos dias, a Idade Média. Ela registra que é enorme o movimento de curiosidade dos franceses atuais em relação à Idade Média, que toca – a expressão é dela – “as mais íntimas fibras” da alma dos franceses.

Em seguida ela se pergunta qual a natureza desse movimento de curiosidade:

“Essa Idade Média, tão presente no mundo de hoje, seria apenas a sustentação de um sonho que se oporia a uma realidade de concreto e de matéria plástica?....

“Não, há algo mais profundo nesse movimento – que é o mesmo que leva tantos franceses a se debruçar sobre suas próprias genealogias. Quando Jean Favier, diretor dos Arquivos de França, houve por bem abrir um curso para esses caçadores de ancestrais e de linhagens que atualmente tomam de assalto nossos arquivos, ele desde logo precisou duplicá-lo, de tal maneira eram numerosos os amadores que desejavam por si mesmos decifrar velhos papéis e pergaminhos que poderiam permitir-lhes um progresso maior em suas explorações, subindo um pouco mais alto na procura de suas origens. Ora, o que impulsiona esses pesquisadores, o que lhes espicaça a curiosidade, é precisamente a necessidade que têm de reencontrar a própria identidade. O estudo
da História, tal como a estabelecem os programas de ensino oficiais, já não os satisfaz; esse estudo frustra uma parte deles, precisamente a parte melhor, aquela que tem verdadeiro sabor da vida; eles querem – e isso já virou clichê – ‘reencontrar suas raízes’. Pois neste mundo em que tudo lhes é facilitado, eles procuram aquilo que está ao alcance do mais humilde dos ciganos: as tradições que lhes são próprias. Eles entrevêem que por trás... das instituições oficiais nascidas por força de uma lei ou de um decreto, há figuras encantadoras, há belas histórias de romance, há fisionomias de contos de fadas, há toda uma arte de viver, uma paisagem familiar, que eles vão descobrindo com o ardor de 7 Paris: Éditions Stock, 1982, pp. 8-9. um arqueólogo que sonda as profundezas de um terreno para tirar à luz do dia uma civilização portadora de tesouros ocultos.”

Sem dúvida Régine Pernoud, nesse trecho, descreveu e exprimiu bem o fenômeno que chamamos da Neo-Genealogia.

. Genealogistas profissionais – revistas especializadas

No Brasil de nossos dias já começam a aparecer pessoas que se dedicam profissionalmente à Genealogia. Na França, isso é muito corrente, existem cadastros organizados de genealogistas, com especializações, com subespecializações, que põem anúncios em jornais, que se correspondem entre si, que trocam informações e pistas. Em Versalhes, por exemplo, se edita uma prestigiosa revista, Héraldique et Généalogie, que é o órgão oficial do Centre Généalogique de Paris, e é dirigida por M. Gérard de Villeneuve, o qual é descendente de genealogistas da Corte francesa nos séculos XVI e XVII.8

Essa revista serve de elo entre as vastíssimas redes de genealogistas especializados, e publica regularmente resenhas das matérias publicadas por outras revistas genealógicas francesas de âmbito mais restrito: revista de Genealogia da Borgonha, da Lorraine, do Marne, da Provence, ou então revista de Genealogia de descendentes de corsários, ou de “gentil-hommes verriers” (nobres fabricantes de vidros), etc.

Na França existe uma Association des Descendants de Corsaires, com sede em Saint-Malo, fundada em 1963. Para fazer parte dessa entidade o candidato precisa provar com documentos que é descendente direto de um corsário que tenha navegado com alvará de autorização concedido por algum rei da França. Descendentes de vis piratas, portanto, estão excluídos; só os descendentes de
nobres corsários podem ingressar...

8 Cfr. DELORME, Philippe. “La Généalogie, c’est comme la chasse!”, Dynastie, Paris, 13-2-1987.



Ainda na França há uma outra entidade, mais restrita, dos descendentes de Robert Surcouf, corsário que viveu entre 1773 e 1827. A sede também é em Saint-Malo.9

Somente em Paris existem duas outras grandes revistas genealógicas, Généalogie-Magazine e Histoire & Généalogie. Ambas são publicadas pela mesma editora Christian. A primeira é de interesse mais geral; a segunda, sem ser exclusivamente nobiliárquica, dedica-se mais especificamente ao estudo de famílias nobres.

Em Portugal, existem duas grandes instituições dedicadas aos estudos genealógicos, cada uma das quais com sua revista, ambas de excelente nível. A primeira é o Instituto Português de Heráldica, fundado por volta de 1940. Edita a revista Armas e Troféus e tem reuniões mensais, no terceiro sábado de cada mês, num local muito pitoresco e evocativo, nas ruínas do Convento do Carmo, de Lisboa, indo todos os membros, após a reunião, jantar na tradicional Cervejaria Trindade, no
refeitório, todo recoberto de azulejos, de um antigo convento.

A segunda é a Associação Portuguesa de Genealogia, fundada mais recentemente, a qual edita a revista Raízes e Memórias.

. O caso dos que querem passaporte europeu

No Brasil, como dissemos, já começam a aparecer pessoas que adotam o exercício da Genealogia como profissão. Ainda são poucos esses genealogistas de dedicação integral, mas já os há em vários Estados, sobretudo do Sul do país. Os clientes são, na sua grande maioria, pessoas que desejam comprovar ascendência italiana, ou alemã, ou de alguma nação européia que admita a
aquisição tardia da nacionalidade ou da cidadania pelo jus sanguinis, pelo direito do sangue.

O desejo de obter o prestigioso passaporte europeu, com as facilidades que tal passaporte assegura, leva muitos brasileiros descendentes de imigrantes europeus a pagarem pesquisadores profissionais para o levantamento de sua origem.


9 Cf. Historia, n.° 564, Paris, 1994.


Mas isso não se confunde, note-se, com o fenômeno da Neo-Genealogia. É mais bem um aspecto episódico, colateral, causado sem dúvida pelas condições tristes do Brasil atual, tão cheio de crises e dificuldades, tão desesperança do futuro. São pessoas que, postas nessa situação, começam a se prevenir para o futuro, para a eventualidade de irem tentar a sorte em outros países mais
ricos. Não são pessoas que estudam as raízes ancestrais pelo gosto de conhecê-las. Seria mais acertado, pois, dissociar esse filão de pessoas do fenômeno da Neo-Genealogia – embora muitas vezes uma pesquisa iniciada por interesse de obter o passaporte europeu acabe se transformando numa paixão para a vida inteira.

Afora os genealogistas profissionais, existe um número crescente de genealogistas amadores, aficionados da Genealogia, que estudam, pesquisam, procuram informações, buscam documentos, etc.

Outro motivo pelo qual se estuda Genealogia, também à margem do fenômeno que denominamos Neo-Genealogia, é de ordem médica. Fazer um levantamento histórico das doenças nos ascendentes até a quarta ou quinta geração pode ser de muita importância para a prevenção de certas doenças, e às vezes até mesmo para estabelecer certos diagnósticos. É cada vez mais freqüente o número
de médicos que adotam o costume de registrar, nas fichas de seus pacientes, os antecedentes familiares patológicos, e que pedem a esses pacientes que se informem do modo mais completo possível sobre tais antecedentes.10

Em janeiro de 1992, a Associação Médica Americana deu a público, como faz todos os anos, suas “Resoluções de Ano-Novo para um país mais saudável”. Pela primeira vez, constava um capítulo com o seguinte título “Escreva a história da saúde de sua família”.11

10 Cf. BROWDER, Sue. “Uma ‘árvore’ que pode salvar sua vida”, Seleções do Reader’s Digest, agosto de 1993; cf. também “Genética começa a revolucionar Medicina”, matéria do U.S. News & World Report, reproduzida em O Estado de S. Paulo de 27-8-1994.
11 Cf. “De volta para o futuro – americanos reconstroem a história das doenças de seus pais e avós
para avaliar os riscos de desenvolver males genéticos”, Veja, 29-1-1992).


Também na área da Psicologia e da Psicoterapia os estudos genealógicos vêm sendo usados. A Dra. Anne Ancelin Schützenberger, professora emérita da Universidade de Nice, desenvolveu uma “terapia transgeracional psicogenealógica contextual”, por meio da qual os pacientes elaboram seus “genossociogramas”, explicitando dessa forma, e resolvendo, problemas familiares herdados dos seus antepassados.12

. Incremento de associações genealógicas

Multiplicam-se e têm grande incremento as associações especializadas em pesquisa genealógica. Aqui no Brasil, além do tradicional Instituto Genealógico Brasileiro – IGB, fundado em 1939, na capital paulista, pelo Coronel Salvador de Moya, existe também o Colégio Brasileiro de Genealogia, com sede no Rio de Janeiro, fundado em 1950 e congregando um grupo notável de pesquisadores; há o Instituto Genealógico do Rio Grande do Sul – INGERS, que reúne,
numa pitoresca e acolhedora sede, pesquisadores gaúchos, na sua maioria de origem alemã; há ainda o tradicional Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Sorocaba, fundado há meio século pelo célebre Aluísio de Almeida (pseudônimo do sacerdote e historiador Monsenhor Luiz Castanho de Almeida); lembre-se ainda o Instituto Hans Staden, de São Paulo, que editou, em
colaboração com o IGB, vários volumes sobre a genealogia de famílias brasileiras de origem alemã, e mantém um fichário organizadíssimo com essa documentação; e a Associação Brasileira de Pesquisadores de História e Genealogia – ASBRAP, fundada em São Paulo, em 1994. A ASBRAP não apenas congrega pesquisadores, mas constitui, por assim dizer, um projeto de sindicato do
pesquisador, que luta por seus interesses e pela preservação do tão desprotegido e abandonado patrimônio arquivístico do País. Com exceção do INGERS e da ASBRAP – que são de fundação mais recente, mas cujo eixo é constituído predominantemente por pessoas que já estudavam Genealogia seriamente muito antes de se generalizar esse fenômeno que aqui estamos denominando Neo-Genealogia – todas as outras instituições mencionadas são bem anteriores ao surgimento do referido fenômeno.

12 Cf. SCHÜTZENBERGER, Anne Ancelin. Meus Antepassados: Vínculos Transgeracionais, Segredos de Família, Síndrome de Aniversário e Prática do Genossociograma. São Paulo: Paulus, 1997.


Mas todas, sem exceção, se beneficiaram numericamente e qualitativamente desse fenômeno. Todas encontram terreno fértil para a arregimentação de novos membros. É
crescente o número de associados, e qualquer trabalho de divulgação da ciência
genealógica obtém, graças precisamente a esse fenômeno que estamos analisando, um resultado surpreendente, muito acima do que seria razoável esperar.

. Reuniões de parentes

Outra manifestação desse fenômeno é a cada vez mais comum realização de enormes encontros de parentes.

Ainda recentemente se reuniram, em São Bernardo do Campo, descendentes da numerosa família Demarchi, uma das primeiras da imigração italiana na região. Foram muitas centenas de parentes que confraternizaram, comendo pratos típicos da imigração italiana (o tradicional frango frito com polenta), em torno de uma senhora muito idosa que é a mais nova das filhas, e a única sobrevivente, do primeiro casal de Demarchi que chegou ao Brasil.

É freqüentíssimo, em jornais, se verem notícias de reuniões dessas. O Banco de Dados do jornal Folha de S. Paulo cataloga sistematicamente reuniões dessas. Os pretextos para essas reuniões, cada vez mais freqüentes, são, por exemplo, comemorar os 100 anos da chegada do primeiro membro da família ao Brasil. O autor do presente ensaio possui em seu arquivo muitas dezenas de recortes
nesse sentido, e só não os menciona para não alongar demasiado este trabalho.

Existem até mesmo, na Internet, alguns sites que facultam aos interessados o know-how indispensável para quem deseja organizar uma reunião de família, com roteiros, cronogramas, impressos a serem enviados para os parentes convidados, etc., etc. – para que nada saia improvisado...

Essas reuniões de parentes ocorrem em todos os países, não apenas no Brasil. Caso muito engraçado ocorreu com uma família portuguesa, de remotíssima origem galega. Resolveram, há cerca de dez anos, confraternizarem-se os membros dessa família, há muitos séculos estabelecida em Portugal, com seus longínquos parentes de mesmo nome e mesma origem, espalhados, a partir da Galícia, por várias províncias da Espanha. Tratava-se, pois, de reunir, numa comemoração conjunta, os dois ramos da família, o português e o espanhol. Pôs-se então o problema das precedências: onde realizar o evento, em território português ou em território espanhol? Se fosse em território português, figurando os portugueses como anfitriões, isso significaria uma superioridade deles sobre os espanhóis, e, mais do que isso, uma precedência da própria nação lusa sobre a espanhola – coisa que os espanhóis não aceitariam. Se a reunião fosse em território espanhol, os de Portugal, pelas mesmas razões, obviamente, também não aceitariam. Acabaram encontrando uma solução jeitosa: a reunião se realizou em Olivença, antiga cidade portuguesa que, na confusão das guerras napoleônicas, foi tomada pela Espanha e há 200 anos permanece
ilegalmente dominada pela Espanha sob protesto português. Em Olivença, ambos os ramos da família se sentiam no território de seu próprio país, fosse ele de direito, fosse de fato... E sem maiores discussões ali se reuniram pacificamente mais de 400 homens dessa família, sem contar mulheres e crianças.

. Clubes e revistas familiares

Uma vez feitas essas reuniões de família, quase sempre os presentes decidem se reencontrar outras vezes, pelo menos uma vez por ano, e logo surgem – muito naturalmente – alguns membros da família que chamam a si a tarefa de organizar e promover novos encontros, que recolhem os endereços dos presentes, que começam a mandar circulares preparatórias de novos encontros e para descobrir outros parentes que não estavam ali, etc. Por vezes chega-se à constituição de verdadeiros clubes familiares, com publicações periódicas próprias, as quais circulam exclusivamente entre os membros daquele clã.

Possuímos em nosso arquivo considerável número de recortes sobre clubes desses, em vários países, e às vezes clubes reunindo membros de uma só família em países muito diversos. Há casos, por exemplo, de famílias italianas que têm um ramo no Brasil, outro nos Estados Unidos, outro em Buenos Aires, além da matriz, digamos assim, na própria Itália. E todos publicam um boletim com
notícias da família, se intercomunicam, se visitam.

No início dos anos 90 ocorreu aqui em São Paulo um caso curioso, em que um desses clubes familiares teve papel importante. Existe em São Paulo uma revista especializada em armas, chamada Magnum. Certo dia, no escritório do diretor técnico dessa revista, Laércio Gazinhato, apareceu um senhor levando um velho revólver Colt modelo 1860, usado pelas tropas nortistas na Guerra da Secessão, muito bem conservado, e tendo algumas incrustações de prata com o nome do possuidor “L.S. Blasdell” e o número de seu regimento. O possuidor do revólver, que desejava avaliá-lo, apenas informou que o adquirira muitos anos antes no interior de São Paulo, na cidade de Americana – cidade que, como é bem sabido, foi fundada por sulistas que se refugiaram no Brasil
após terem sido derrotados na Guerra da Secessão, nos Estados Unidos.

Como era um revólver raro, o especialista se interessou no caso, procurou literatura especializada, escreveu para a fábrica Colt, escreveu para o Museu da Academia Militar de West Point, e, após mais de dois anos de pesquisas, conseguiu apurar que o revólver em questão fazia parte de um lote de 600 armas adquirido em 1861 pelo exército unionista; seu proprietário, o voluntário Levi
Blasdell, tinha se alistado num regimento de voluntários da Pennsylvania, havia lutado longamente, depois caíra prisioneiro dos confederados sulistas (ocasião em que, presumivelmente, perdera sua arma) e mais tarde fora trocado por um prisioneiro sulista em poder dos nortistas. O curioso – e é por isso que essa história interessa ao presente ensaio – é que as pesquisas do Sr. Laércio Gazinhato foram grandemente facilitadas porque ele entrou em contato com uma “Associação Nacional da Família Blasdell”, a qual edita uma publicação intitulada Blasdell Papers. Por meio dessa revista, o Sr. Gazinhato conseguiu entrar em contato com os descendentes do militar, conseguiu os dados
biográficos completos dele, conseguiu um velho daguerreótipo dele, e conseguiu ademais uma árvore genealógica dos Blasdell até o século XV. Ele agora está tentando adquirir a arma para mandá-la aos Estados Unidos, para ser incorporada ao acervo que a família Blasdell conserva.13

. Livros de família

São também freqüentes os “Livros de Família”, geralmente preparados com esforços incríveis por abnegados pesquisadores que reúnem, nas suas próprias famílias, toda a documentação disponível e se embrenham em pesquisas, algumas vezes de grande vulto e abrangência, pelo passado. O resultado é, geralmente, um livro de interesse restrito somente aos membros daquela família. Mas casos há de estudos sociológicos de interesse bem mais amplo, a partir do estudo de caso de uma determinada família.

Veja-se, por exemplo, o seguinte: na Universidade Federal do Rio de Janeiro, há poucos anos, foi defendida uma tese de mestrado pelo Prof. Luiz Gonzaga Piratininga Júnior, descendente de escravos do Mosteiro de São Bento, em São Paulo. Ele conseguiu reconstituir a história de nove gerações de sua família, cinco das quais cativas, e publicou um livro, pela Editora Hucitec,
intitulado Dietário dos Escravos de São Bento.14

. Informática e Genealogia

Poderíamos nos estender aqui longamente a respeito de um fator que ajuda bastante os genealogistas, e os neo-genealogistas, em suas pesquisas. É a utilização de recursos técnicos modernos, tais como microfilmes e, mais recentemente, computadores. Há muitos programas de computação especiais para uso de genealogistas.

A Informática facilitou muito a disseminação da Neo-Genealogia. Uma investigação sumária na Internet permite que qualquer pessoa rapidamente se ponha em contato com inumeráveis sites de teor genealógico, nos quais se divulgam e permutam informações preciosas. Numerosas listas de discussão de genealogistas se mantêm ativas, e até mesmo revistas de Genealogia são publicadas on-line. No Brasil é esse o caso da revista Gen-Tree, de São Paulo, órgão da Associação Brasileira de Genealogia e dirigida pela genealogista Marta Amato.


13 Cf. GAZINHATO, Laércio. “À procura de L.S. Blasdell”, in Magnum, São Paulo, maio/junho de 1993.
14 Cf. “Álbum de família”, Veja, 11-3-1992.


Atualmente é quase incompreensível que alguém pense em fazer sua própria genealogia sem recorrer às informações postas ao alcance de todos pela Internet. Ademais dessa fonte privilegiada de informações, a Informática pode também facilitar os estudos genealógicos de diversos outros modos:

a) em arquivos públicos ou privados de grande porte, com vistas a favorecer o acesso às informações, de modo a que não se percam como agulhas em palheiro;

b) para o armazenamento de dados já pesquisados, detecção de homônimos, cálculos do chamado implexo genealógico, etc.;

c) para a elaboração de projetos gráficos de linhagens e árvores genealógicas;

d) para o estabelecimento de graus de parentesco remoto, ou dos vários títulos de parentesco;

e) para o cálculo de probabilidades de parentescos incertos.

Mas, sobretudo, o que ajuda muito os estudiosos é a possibilidade de pesquisar e contatar outros estudiosos e parentes por meio da Internet. Um genealogista brasileiro que deseje, por exemplo, estudar clans escoceses, com vistas a completar seus conhecimentos sobre um remoto ancestral escocês, pode servir-se perfeitamente da Internet. Por qualquer mecanismo de pesquisa (como o Google, o Yahoo ou o Altavista), uma rápida navegação na Internet lhe permitirá descobrir não só dados históricos sobre o clan desejado, mas poderá copiar em sua impressora, em cores, o respectivo tartan – ou seja, aquele tecido de lã com padrão e cores distintivas unicamente dos membros daquele clan, usado nos kilt (o saiote tradicional escocês). E poderá encontrar com facilidade numerosos endereços eletrônicos de membros do clan na Escócia, na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Canadá, bem como de associações de membros do clan nos vários países. Sem dizer que tomará facilmente conhecimento das regras e normas do complicadíssimo sistema clânico, de origens célticas e, em pleno século XX, observado em larga medida na Escócia, na Irlanda e no País de Gales.

Um único exemplo entre muitos outros: veja-se na Internet o site da Clan’s Drummond Society, constituída por pessoas do mundo inteiro que descendem do famoso clan escocês que se tornou célebre por sua abnegada fidelidade aos Stuarts afastados da coroa de Escócia e Inglaterra pela Casa de Hanôver.

. Cursos e livros de iniciação genealógica

Por fim, cabe também mencionar a multiplicação de cursos de vários níveis, para iniciação e aperfeiçoamento de genealogistas, sempre com grande freqüência e encontrando grande receptividade.

Multiplicam-se também livros do gênero Faça Você Mesmo Sua Árvore Genealógica, Genealogia para Principiantes, etc.

. Qual a causa profunda desse fenômeno?

Uma vez vistos, embora resumidamente, em traços muito ligeiros, os fatos, passemos à segunda parte deste ensaio, ou seja, à pergunta levantada no seu subtítulo: – Por que tanta gente hoje em dia procura as próprias raízes?

Note-se mais uma vez que não é o desejo de encontrar ancestrais nobres que leva muitos a se dedicarem a esses estudos. Mas seria errado também ver nessa neo-genealogia um plebeísmo militante e anti-aristocrático. Na realidade, ser nobre ou plebeu é um problema que nem se põe. Trata-se do mero gosto de encontrar as próprias raízes, provenham elas de onde provierem.

Como explicar esse gosto, esse interesse?

Há nisso, sem dúvida, algo de modismo. O papel do livro de Alex Haley não pode, nessa perspectiva, ser subestimado. Mas seria superficial ver só modismo, ou ver preponderantemente modismo nisso. Na realidade, são anseios de alma mais profundos que encontram vazão dessa forma.

Que anseios são esses?

O homem, dizia Aristóteles, é um animal racional e político. Ele tem alma, ele pensa, a ele convém viver politicamente, isto é, em polis, em comunidade com seus semelhantes. Ele tem o instinto de sociabilidade proveniente da sua natureza livre e racional, e por isso lhe repugna o isolamento.

Cada homem, pois, deve ser considerado e deve considerar-se como fazendo parte de um conjunto.

Esse conjunto não deve ser somente no espaço, mas também no tempo.

No ESPAÇO: os homens têm necessidade da companhia de seus semelhantes para viverem, pelas insuficiências dos indivíduos e pela necessidade de uns proverem às carências dos outros; mas também pela simples conveniência do mútuo relacionamento, para a satisfação de um instinto indissociável da natureza humana, que é o instinto de sociabilidade.

É sabido que uma das profissões mais bem pagas pela Marinha brasileira é a de guardião de faróis. Trata-se de um funcionário que é levado para o farol, no meio do mar, com toda espécie de confortos, com um esplêndido salário, tendo como única obrigação acender o farol todas as noites e desligá-lo todas as manhãs, e nada mais... Mas ele tem o ônus de viver meses seguidos sem ver ninguém, sem se comunicar com ninguém a não ser por rádio. À primeira vista, parece muito fácil ser guardião de farol... Na realidade, essa função é muito difícil de ser preenchida, a Marinha tem extrema dificuldade de preencher seus quadros de guardiães de farol, e muitas vezes acontece de alguém aceitar e poucas semanas depois, desesperado, pedir socorro por rádio desistindo do contrato com medo de ficar louco. E há casos de o guarda-farol enlouquecer de fato! Profissão considerada de alto risco, pois...

No TEMPO: não só no espaço, mas também no tempo o homem deve considerar-se num conjunto, constituindo não um ser fechado sobre si mesmo, como uma ilha no mar, mas como um elo na transmissão da vida, um elo num processo vital, ao mesmo tempo efeito de seus ancestrais e causa de seus descendentes.

Essas as indagações filosóficas primeiras que decorrem, no homem, da simples consciência que ele tem de sua própria existência: de onde vim? para onde vou? qual é a minha causa? de que serei causa?

Ensina São Tomás de Aquino, na Summa contra gentiles, que o estudo do princípio da causalidade (estudo meramente racional e filosófico, independente de qualquer consideração de ordem sobrenatural ou teológica) é de si suficiente para a criatura racional chegar à certeza da existência de Deus, a primeira das causas, a Causa causarum dos escolásticos. Essa é precisamente uma das cinco vias de São Tomás para o conhecimento da existência de um Deus único, eterno e todo-poderoso, anterior a todas as coisas, Causa de todas elas e, por sua vez, não causado por nenhum outro ser.

Todo o relacionamento de cada homem com seus semelhantes se insere no contexto mais amplo e supremo do relacionamento dos homens com Deus, de cada homem individualmente considerado com Deus.

Em outras palavras, convém ao homem que ele se sinta integrado numa sociedade, num conjunto de homens desiguais, com funções diferentes, todos dignos e necessários, sem dúvida, todos exercendo uma função social – quer dizer, cumprindo um papel, um dever em relação ao conjunto – e todos se sentindo, por assim dizer, degraus nessa imensa escada que constitui a Criação, até seu topo, em que está o próprio Deus. Todas essas considerações filosóficas básicas, que dizem respeito diretamente ao relacionamento criatura-Criador no âmbito individual, poucas pessoas as colocam clara e explicitamente diante dos olhos. Mas elas constituem a problemática fundamental da vida de cada homem, queira ou não queira ele ver isso de frente, tenha ou não tenha ele consciência clara disso, seja ou não seja ele capaz de formular isso em termos filosóficos.

. Isolamento antinatural do homem moderno

Ora, o homem atual vive forçosamente isolado, o que vale dizer violentado contra sua própria natureza.

Ainda aqui cabe distinguir espaço e tempo.

No ESPAÇO, temos hoje famílias celulares, desunidas, frágeis e instáveis, lares desfeitos; no TEMPO, vemos transformações demasiado rápidas, eliminação das tradições, rompimento conflitante e dialético com o passado, falta de convivência intrageracional, conflitos dialéticos entre as gerações, etc.

Vamos tratar muito rapidamente embora, desses vários pontos.

Em primeiro lugar falemos da crise da família.

. Crise da família

Que hoje a família está em crise, é algo de tão evidente que nem precisa demonstração. Para começar, a própria noção de família já é caótica. Sem pretender fazer aqui qualquer consideração de ordem moralizadora, é preciso registrar que, por família, tradicionalmente se entendia o lar constituído em torno do matrimônio estável, sólido, com o casal, seus filhos, seus netos, seus parentes mais próximos ou menos, todos integrando de forma harmoniosa e não conflitante o conjunto familiar.

Hoje, com a facilidade com que se fazem, se desfazem e refazem casais, essa família há muito deixou de existir. Quantos problemas psicológicos modernos não terão aí origem? Como pode ser bem criada uma criança que nasce em um lar desfeito, que se acostuma a ver desde cedo brigas, confrontos, entrechoques em casa, e que por vezes nem conhece os verdadeiros pais?

Evidentemente, essa moderna crise da família – causada, sem dúvida, pelo hedonismo, pela busca desenfreada do prazer, pela fuga dos deveres inerentes à condição de quem contrai matrimônio–éumdos fatores de instabilidade nervosa e psíquica, de insegurança. Ela não pode deixar de ser considerada parte integrante de uma crise muito mais grave, de caráter religioso e moral.

. Crise religiosa e moral

A crise da família está, aliás, intimamente relacionada com outra imensa crise contemporânea, no âmbito religioso e moral. No que diz respeito à Igreja Católica, basta recordar aqui algumas palavras do Papa João Paulo II:

“É necessário admitir realisticamente e com profunda e sentida sensibilidade que os cristãos hoje, em grande parte, sentem-se perdidos, confusos, perplexos e até desiludidos: foram divulgadas prodigamente idéias contrastantes com a Verdade revelada e desde sempre ensinada; foram difundidas verdadeiras e próprias heresias, no campo dogmático e moral, criando dúvidas, confusões e rebeliões; alterou-se até a Liturgia; imersos no relativismo intelectual e moral e por conseguinte no permissivismo, os cristãos são tentados pelo ateísmo, pelo agnosticismo, pelo iluminismo vagamente moralista, por um cristianismo sociológico, sem dogmas definidos e sem moral objetiva.”15

Essa crise na Igreja teve como conseqüência abalar, por força do “relativismo” de que fala João Paulo II, princípios morais durante dois mil anos considerados inabaláveis. Já não se tem clara, como outrora, a noção de bem e mal, do que é lícito e do que não o é. Como se vê, esse é mais um fator de incerteza e insegurança, a somar-se a tantos outros.

O fato é que nas várias confissões religiosas contemporâneas – com exceção do maometismo de tipo “fundamentalista” – pode-se notar a mesma tendência generalizada para o relativismo doutrinário e moral, de modo que os contornos ou fronteiras entre as diversas religiões, assim como entre o bem e o mal, são cada vez menos distintos e definidos.

Cada ideologia religiosa (e o mesmo, aliás, se poderia dizer das ideologias políticas) já não pretende mais conter toda a verdade, mas tão só um aspecto cambiável, incerto e fragmentário de uma única “verdade global”.

Quando até em matéria de fé penetra esse elemento de relativismo e incerteza – e portanto de insegurança – nada mais explicável que as pessoas se sintam desamparadas e inseguras, imersas numa imensa “crise de valores”.

15 Discurso de 6-2-1981, de S.S. João Paulo II aos Religiosos e Sacerdotes participantes do I
Congresso Nacional Italiano sobre “Missões ao Povo para os anos 80”, in L’Osservatore Romano, edição em português, 7-2-1981.

. Hipertrofia do Estado, falta de apoio dos organismos intermediários

Ao minguamento da família correspondeu, nos últimos duzentos anos, uma crescente hipertrofia do Estado onipotente e onisciente. Sem o apoio dos organismos intermediários de sociedade – dos quais o principal é a família – é igualmente explicável que os indivíduos se sintam desamparados e inseguros.

. Esboroar dos grandes mitos

Outro fator de insegurança do homem moderno: o esboroar dos mitos do século XX. Por exemplo, o mito do progresso. Durante gerações, todos creram firmemente nesse mito. Era um progresso que parecia rumar ineludivelmente numa direção certa, após ter rompido decididamente com o passado, visando a extinção da pobreza, da dor, da doença, da guerra, da morte. Talvez nenhum sintoma haja mais significativo disso como certas pessoas que, sofrendo nos anos 60 de doenças incuráveis, pagaram quantias avultadas para serem congeladas em laboratórios especiais, à espera de que, num futuro que se lhes afigurava certo, fosse descoberta a cura para suas doenças, ocasião em que seriam descongeladas, curadas e voltariam a viver confortavelmente. A imprensa noticiou, há poucos meses, que vários desses laboratórios haviam sido processados por charlatanismo e má-fé, pois continuavam a cobrar altas “taxas de manutenção” de corpos congelados que já estavam há muito tempo em irremediável estado de putrefação.

A medicina parecia rumar para um auge em que as doenças seriam definitivamente levadas de roldão. Os leitores de mais de 45 ou 50 anos certamente se recordarão de terem ouvido, quando meninos, velhos comentarem que a última das batalhas que a medicina precisava enfrentar era a do câncer. Porque, vencido o câncer, todas as outras doenças pouco mais ou menos estavam sob controle. O câncer, vencido propriamente não foi. Mas deixou de ser, na maior parte dos casos, aquele espantalho dos anos 60. No entanto, aumentaram terrivelmente – em última análise como conseqüência do progresso tecnológico – as doenças cardiovasculares; e também apareceu a AIDS, surgem agora as chamadas bactérias mutantes contra as quais – pelo menos a julgar pelo que divulga a grande imprensa – já nada podem os mais poderosos dos antibióticos.

. Mediocracia, ausência de elites autênticas e de modelos humanos de referência

Cabe aqui dizer uma palavra sobre mais outro fator de insegurança e de insatisfação para o homem moderno.

De modo geral, na vida pública da maior parte das nações, ainda mesmo daquelas formalmente democráticas, o que presenciamos é um afastamento (maior ou menor, conforme a nação) dos homens bons e honestos da vida pública, com o predomínio da chamada “Lei de Gerson”, a tirania do número sobre a qualidade, o domínio da mediocridade e da desonestidade sobre a real
capacidade e a retidão.

São regimes que oprimem as verdadeiras elites nacionais e instauram de fato “mediocracias”, ou seja, estabelecem a tirania das mediocridades.

Ora, se de algo o mundo moderno tem necessidade é de verdadeiras elites, compostas por um escol de pessoas verdadeiramente superiores – note-se, aqui, que se trata de uma superioridade sobretudo moral e cultural, muito mais do que apenas econômica ou social – que tenham autêntica noção de serviço do bem comum, que não se limitem a fruir egoisticamente seus privilégios mas cumpram,
junto às demais camadas da sociedade, sua função social de exemplaridade.

Talvez surpreenda a expressão “função social de exemplaridade”. Na realidade, entendemos que qualquer pessoa que a algum título é superior tem, entre outras obrigações, a de dar bom exemplo aos que não têm aquela superioridade. Uma das mais graves carências de nossos contemporâneos é a de modelos humanos que, por sua exemplaridade, possam servir de paradigmas, sobretudo às
gerações mais jovens.

Para não nos estendermos demasiado sobre esse ponto, limitemo-nos a transcrever breves trechos de um interessante artigo publicado há poucos anos por The Times, de Londres, sob o título “Pesquisa revela que americanos sofrem carência de heróis atuais”:

“Segundo um novo levantamento, os americanos, tomados pelo ceticismo e cansados dos modelos de comportamento medíocres, sofrem dramática falta de heróis nos tempos modernos. Em uma pesquisa de opinião com 1.022 americanos, conduzida pela US News and World Report, mais da
metade das pessoas ouvidas não conseguiu indicar uma figura pública viva que merecesse ser chamada de herói. Um em cada seis americanos não tem nenhum herói.”16 Pode-se bem perguntar se essa ausência de elites não é um dos fatores de insegurança e instabilidade do homem moderno, e se não é também um componente importante da visão de conjunto dentro da qual devemos inserir o fenômeno da Neo-Genealogia.

. Noção de final de era histórica

Outro aspecto a considerar é que por toda a parte começa a se generalizar, nestes primeiros anos do século XXI, a noção mais ou menos difusa de que estamos assistindo aos últimos estertores de uma era histórica e aos primeiros albores de uma nova.

Não se trata, aqui, de charlatanismos, de crendices e temores como os que, afirma-se, tiveram grande voga na Europa quando se aproximava o fim do primeiro milênio. Trata-se de algo muito mais sério e digno de reflexão e análise.

Vale a pena ler o que sobre isso declarou há pouco mais de dez anos o Prof. Norman Stone, professor de História na Universidade de Oxford, e um dos mais prestigiosos intelectuais do Partido Conservador inglês, com numerosos livros e estudos históricos e sociológicos publicados. Esse professor teve um papel importantíssimo durante o governo da Sra. Margaret Thatcher, e colaborou com esta na redação do livro de memórias que ela escreveu, intitulado Os Anos de Downing Street. É um intelectual prestigioso e sério, nem um pouco comparável a certos “futurólogos” mais ou menos charlatanescos que de vez em quando gostam de fazer declarações apocalípticas para atraírem a atenção do público sobre suas pessoas.


16 KAY, Katty, artigo reproduzido por O Estado de S. Paulo, de 14-8-2001.



Declarou o Prof. Stone à imprensa italiana, mais precisamente ao jornal Corriere della Sera, de 28-4-1994:

“As nossas cidades estão sendo invadidas por mendigos e sem-teto. As nações se desintegram em pequenos potentados mafiosos. As leis não são mais respeitadas, enquanto se tornam moda as superstições e as pessoas se reúnem de noite nos bosques para celebrar missas negras. Grandes epidemias mortais ceifam rapidamente vidas humanas sem que ninguém saiba curá-las. E as tribos estão novamente em pé de guerra, da África à Europa. Deixemo-nos de iludir-nos com as mentiras da tecnologia e sobre o progresso científico. É como historiador que afirmo: este mundo está voltando à Idade Média. E vós, italianos, como sempre antecipais o fenômeno.”

A tese do Prof. Stone é que o Ocidente entrou numa fase de decadência sem retorno. Padece de um câncer, ao mesmo tempo moral e material, que cancelará cinco séculos de “modernidade” e que o precipitará novamente no obscurantismo da primeira Idade Média:

“A Itália sempre foi o lugar onde os grandes fenômenos históricos tomaram forma. Basta pensar no Renascimento. Ora, a nação italiana está se desintegrando, estão novamente divididos entre guelfos e gibelinos e espalhados em tantas cidades-estado, unidas apenas por uma fidelidade formal a um governo fantasma.

O mundo moderno nasceu por volta de 1500... e tinha três símbolos: a imprensa, as leis e o conceito de Estado-Nação. Todos os três estão desaparecendo hoje. A cultura escrita está sendo substituída pela visual. As pessoas não aprendem mais nos livros, mas pelos cantadores ambulantes das televisões, pelos menestréis das imagens. Quanto às leis, não são mais respeitadas, e a polícia não ousa de modo algum entrar em certas periferias degradadas.
O Estado-Nação range em toda Europa. A Alemanha é um conjunto de Estados que fazem de conta que são uma entidade integrada. Colônia, Baviera ou Hamburgo são potências com as quais o governo central deve cada vez mais fazer as contas. São os ‘grandes eleitores’ de um imperador
débil e incerto.

– E no plano europeu? – pergunta o entrevistador.
– É a mesma coisa: se o projeto de Maastricht segue em frente, criaremos o equivalente do Sacro Império romano, isto é, uma ficção jurídica onde os que comandam de verdade são os pequenos senhores regionais.
– Tudo somado, não se vive melhor hoje do que naqueles séculos?
– É outra mistificação. Hoje o Estado democrático e liberal cedeu lugar aos network paralelos, como os dos traficantes de droga. Vivemos numa nova floresta de Sherwood, à mercê dos bandidos. Esses piratas sem pátria lançam seus ataques e se refugiam em bases inexpugnáveis. Outrora eram pequenos portos. Hoje são os paraísos fiscais.
– Por que o Ocidente perdeu a capacidade de se defender?
– Porque não construímos a nossa riqueza, mas a recebemos como herança. Sucumbiremos face aos novos povos, talvez bárbaros, mas mais fortes e unidos.
– Quais?
– Os orientais, até não excluiria o retorno do Islã”17
Declarações análogas fez, no mesmo ano, o então Presidente da República Tcheca, Vaclav Havel:


17 Cf. STONE: Voltaremos à Idade Média, vocês italianos por primeiro.” Entrevista a Riccardo
Orizio, in Corriere della Sera, 28-4-1994.


“Há boas razões para pensar que a idade moderna terminou. A ciência moderna clássica só descrevia a superfície das coisas. E quanto mais dogmaticamente a ciência a tratou como única dimensão, como a essência mesma da realidade, mais enganadora se tornou.

Desfrutamos de todos os êxitos da civilização moderna, que facilitaram a nossa existência física em muitos aspectos importantes. No entanto, não sabemos exatamente o que fazer de nós, aonde acudir. O mundo da nossa experiência parece caótico e confuso. Por muito que os peritos nos expliquem todos os fenômenos do mundo, cada vez compreendemos menos a nossa própria vida. Vivemos num mundo pós-moderno, onde tudo é possível e quase nada é seguro. A civilização planetária a que todos pertencemos lança-nos desafios mundiais. Não sabemos como levá-los a cabo, porque a nossa civilização só universalizou a superfície das nossas vidas.”18

Note-se que, ao citarmos aqui esses dois pensadores, isso não significa que concordemos irrestritamente com tudo quanto dizem. Apenas os citamos para mostrar como é generalizada em nossos dias, até nos meios cultos, a noção difusa de que estamos chegando ao fim de uma era histórica – o que, evidentemente, corrobora para a insegurança do homem moderno.

Os dois depoimentos são anteriores ao atentado do 11 de setembro de 2001, que destruiu as torres gêmeas do World Trade Center – atentado que possivelmente no futuro poderá vir a ser considerado um marco histórico divisor de águas como foi, por exemplo, a queda de Constantinopla, em 1453, indicativa do fim da Idade Média. O recentíssimo atentado na
estação ferroviária de Atocha, em Madri, deixou bem claro que o 11 de setembro, infelizmente, foi tão-só um prelúdio de algo maior e pior que pode estar em curso.

Tudo isso é mais um fator de insegurança para o homem moderno, a ser inserido na visão de conjunto dentro da qual se situa o fenômeno da Neo-Genealogia.

18 Discurso reproduzido pelo jornal Público, de Lisboa, 7-8-1994.


. Fatores de ordem econômica e condições trepidantes da vida moderna Outros pontos ainda poderiam ser lembrados: as condições trepidantes da vida moderna, a criminalidade, a violência, a falta de pontos de referência seguros (por exemplo, surtos de inflação destruindo a noção do caro e do barato), a instabilidade econômica. Não nos estenderemos aqui sobre esses fatores porque são evidentes e por demais conhecidos. Todos eles fazem o homem de nosso tempo sentir-se como um animalzinho fraco, inseguro e indefeso, arrastado por forças colossais contra as quais ele nada pode e sem as proteções de cunho familiar, psicológico e religioso com as quais, no passado, ele podia contar.

. Perguntas finais

Diante de tantos fatores de insegurança e mal-estar, como estranhar que ele busque, ainda que subconscientemente, algum grande antepassado mítico e arquetípico, que resuma e contenha em germe todas as virtudes e potencialidades da família? Algo à maneira do Kunta Kinte de Alex Haley ou, em termos luso-brasileiros, do Tructesindo Mendes Ramires, no qual o Gonçalo, de A ilustre Casa de Ramires, foi encontrar a força de alma que lhe faltava?

Essa busca subconsciente de um antepassado mítico não será bem sintoma de outra orfandade do homem moderno, a que lhe provém da ausência de modelos ideais, à qual já aludimos acima? Os modelos humanos já não são os grandes homens, mas sim os que os meios de comunicação social apresentam como tais. A era dos grandes homens de verdade parece ter passado, o que é outro fator de falta de ponto de referência, de desnorteamento e insegurança, portanto.

Como estranhar que um homem como o de nosso tempo, que se sente violentamente arrancado a condições de vida que lhe são próprias e transplantado para um outro terreno que é tão contrário a sua natureza, vá procurar, ainda que subconscientemente, em suas raízes ancestrais um elemento de segurança e de legítima e explicável auto-afirmação?

Concluímos estas já longas considerações com um breve trecho de matéria publicada no jornal parisiense Le Point, no qual, com aquela precisão e aquele espírito de síntese peculiares ao gênio francês, é resumido tudo quanto aqui explanamos:

“O famoso adágio da III República (Um bom republicano não tem necessidade de antepassados) parece esquecido dos cem mil franceses que hoje se dedicam a pesquisas genealógicas. Isso se deve ao poder exercido sobre os espíritos pelos grandes nomes da antiga aristocracia.

O mais poderoso impulso nessa direção não é a vaidade. Trata-se de uma busca de identidade pessoal que a história da família pode dar. Numa sociedade sem raízes a descoberta da própria estirpe é forte apoio psicológico ao homem moderno. A genealogia oferece aos franceses um remédio às angústias de um período de individualismo triunfante.

A família, o nome, a hereditariedade cativam cada vez mais o simples cidadão. Ele escapa assim ao anonimato moderno.”19

19 Gothamanie, Le Point, Paris, 20-8-1994.

2 comentários:

Unknown disse...

minha avo se chama MANUELA MARIA DE JESUS FILHA DE JOSE COELHO PINTO QUE E FILHO DE JOAQUIM COELHO PINTO QUE E TIO DO José
Coelho Pinto (Deco) e irmãos que viveram no Córrego do Ferrujão situado no atual município de Goiabeira MG; QUERO SABER MAIS SOBRE OS PARENTES

Unknown disse...

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